domingo, 20 de fevereiro de 2011

A alma em cores e telas

A alma em cores e telas


O encontro do artista Descartes Gadelha com os catadores do lixão do Jangurussu foi dramático. Para entender aquelas pessoas, tão iguais e tão diferentes dele, Descartes os capturou na pintura. Para ele, o resultado não é arte. É outra coisa que não tem nome

19.02.2011| 16:00

Descartes encontrou os catadores do Jangurussu no início da década de 1980 (FCO FONTENELE)Descartes encontrou os catadores do Jangurussu no início da década de 1980 (FCO FONTENELE)

Depois de um certo tempo pintando no isolamento do ateliê, as tintas ficam viciadas e é preciso sair, colocar o cavalete no meio do tempo, diante de uma paisagem qualquer, para encontrar novas cores no mundo real. Era essa a intenção de Descartes Gadelha, pintor, músico e escultor, quando saiu em campo para pintar o pôr do sol. Não fosse o cheiro azedo que sentiu, teria sido uma tarde de inspiração estilística e só. “Me afastei, mas o cheiro continuou. Quando subi num monte de mais ou menos 15 metros, descortinou-se diante de mim o Inferno de Dante, ou pior”, lembra.

O encontro com os catadores do lixão do Jangurussu, no início da década de 1980, mudou completamente a vida de Descartes Gadelha. Depois de um ano e meio convivendo com eles, pintando cenas e personagens no lixão - um trabalho muito mais catártico e emotivo do que estético -, não deu mais para ser o mesmo homem. “Surtei. Foi dramático, fiquei doente. Ouvi coisas e vi cenas horríveis. Não tinha intenção de mostrar os trabalhos que fiz”, conta numa longa entrevista por telefone. No ano passado, a coleção completa foi exposta novamente no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. A primeira foi em 1989, nove anos depois de Descartes finalizar a experiência no Jangurussu.


Para ele, as 70 pinturas, todas em óleo sobre tela, e os 50 desenhos feitos durante o ano e meio que passou no lixão, não são arte. “Queria capturar a alma daquelas pessoas para lê-las depois. Não estava preocupado com a beleza de nada, com o equilíbrio de nada”. As cores, os semblantes com vincos acentuados, as expressões do quadros, têm uma linguagem poética comovente e brutal. Uma tradução direta do espanto e do horror do artista diante do Inferno de Dante. (Mariana Toniatti)


OP - Até encontrar o Jangurussu sem querer, você não tinha ideia de como funcionava o lixão?

Descartes - Tinha informação, mas nunca tinha visto. Aquele momento foi um choque muito grande. Meu sentimento estava canalizado para um pôr do sol. De repente inverteu tudo. Me impressionou também a parte plástica. Era uma mistura de elementos, material e cores, que na minha paleta não tinha. Mas isso foi uma coisa secundária. O que me interessou mesmo foi compreender a alma daquele povo. Era um ímpeto, uma necessidade suprema de colher algo para a sobrevivência, que não os diferenciava dos urubus, dos cachorros, dos porcos. Eles se confundiam. Todos lutando pela sobrevivência.

OP - Nesse primeiro momento do choque você já começou a pintar?

Descartes - Busquei mais material e voltei. Fiquei desenhando sem entrar em contato para não ser considerado um fiscal da prefeitura, um jornalista. Não queria ser um vereador, que eles detestam. Não queria chegar lá por curiosidade. Quem trabalha com arte, pelo menos para mim, deseja a autenticidade da ação, a representação natural daquele instante vivido pela pessoa. Quando ela metia as duas mãos dentro da lama, do lixo, para colher um pedaço de pão, esse gesto não podia ser teatralizado e qualquer observação analítica de um forasteiro poderia interferir nesse movimento.

OP - Mas você conseguiu ficar invisível todo o tempo?

Descartes - Aos poucos passei a conversar com algumas pessoas. Ia merendar com eles, levava uma roupinha... Uma filantropia meio descarada, terrível. Contribuía um pouco, discretamente. Dizia que estava lá porque gostava de desenhar, achava bonito o lixo, o caminhão. Depois eles descobriram que estava era fazendo retratos e alguns posaram para mim. Pensavam que era uma pessoa desequilibrada, um pastor querendo doutriná-los, um fiscal, tudo menos artista. Eram desconfiados principalmente com quem ia colher dados para se beneficiar. Pessoas que se locupletam de ideias para mais tarde fazer um filme e ganhar um Oscar.

OP - Essa é uma crítica clara a Vik Muniz?

Descartes - Não vou nem ver o filme. Acho acintoso. Só quem conviveu pode compreender isso que estou dizendo. Qual a contribuição?

OP - Você teve outro contato com os catadores depois dessa experiência no Jangurussu?

Descartes - Alguns anos atrás passei a ver catadores empurrando carrocinhas e fiz outra coleção que chamei de Heróis do Papelão. Nos anos 90, eles catavam só papel e papelão. Fiquei muito impressionado, tanto com a questão dramática, a capacidade de caminhar pela cidade toda, como com o espetáculo plástico dos carrinhos. Eles são obras de arte efêmeras, mudam a cada pedaço de material colocado no carrinho durante a noite. Uma visão fantástica, quase surrealista. Dessa vez entrou mais a parte artística, estética, que a visão sociológica. Foi uma situação totalmente diferente. Tem a ver com a questão do lixo, mas é reciclagem. O catador vai direto no cara (deposeiro), pesa aquela colheita, compra o jantar, vai pra casa. É mais uma questão profissional, não é desespero. Nesse coloquei estética.

OP - Essa parte artística levou ao desenvolvimento de uma estética do lixo como já se falou tanto da estética da fome?

Descartes - Sim. A poesia num pai de família que sai andando a cidade toda para voltar mais tarde com alguma coisa, a parte plástica propriamente dita, o cenário da noite, o contraste violento do carro de luxo com a carroça. Existe um heroísmo e uma humildade muito grande. A maior grandeza daquela miséria absoluta de 30 anos atrás que conheci no Jangurussu, é a coisa mais importante que o ser humano pode conter: a humildade autêntica, não pela condição social, nem por se sentirem humilhados.

OP - Apesar de tudo, o catador não costuma ser uma figura deprimida, rancorosa, e com a questão da sustentabilidade em pauta, ele sabe que é importante nessa cadeia. Você percebeu isso quando os encontrou na rua, anos depois?

Descartes - Eles pegaram o termo reciclador como palavra de dignificação. Os ecologistas levantaram essas questões e esses termos chegaram ao catador. Inclusive no Jangurussu, onde foi instalada uma usina, um projeto piloto que não deu muito certo, entre outras coisas, porque empregou meia dúzia de pessoas enquanto no lixão tinham mais de 1500 trabalhando em turnos que viravam a noite. Essa é a melhor hora, inclusive. Chega o lixo nobre, que sai dos bairros chiques. Essa coleta é de madrugada, quando as pessoas estão dormindo e as lojas estão fechadas. É uma festa quando chega lixo dos restaurantes!

OP - Você quis pintá-los para contar essas histórias? Denunciar?

Descartes - Minha intenção não foi fazer arte engajada. Fui surpreendido por algo que não tinha vivenciado e tive um choque. Queria compreender o contraste entre um homem que almoçou peixe à delícia, vendo aquelas pessoas comendo lixo. Embora levasse alguns quadros para trabalhar na oficina, a parte psicológica era muito mais presente. Quando se faz uma obra com intenção de expor em galeria, de vender em leilão, se conceitua dentro de regras. É um crime premeditado, o meu foi passional. Queria capturar a alma da pessoa diante daquela situação sem nenhuma preocupação de fazer um rosto bonito. Era uma tentativa de lê-la depois. Quem é ela? Para onde vai? O que espera da vida? Será que tem religiosidade? O que estou olhando na tela não é arte. Está dentro do âmbito da arte porque é feito por um artista.

OP - E isso não tem nome?

Descartes - Os alemães chamam de expressionismo, mas não é não. Peguei problema de pele, bronquite. Talvez esteja doente porque não tinha a defesa que eles têm. Uma vez fiz uma pergunta idiota: ‘Vocês não ficam doentes?’ Já tinha bronquite, tosse... A resposta foi: ‘Aqui ninguém adoece. Ou se está vivo ou morto. Doença é para quem e rico’. É muita coisa que você escuta e vê. Surtei.

OP – A família e os amigos diziam isso?

Descartes - Não falava muito onde estava para não criar uma situação de interferência. Depois que saí do Jangurussu, foram nove anos sem expor os trabalhos pensando: ‘por que tenho que mostrar?’ Quando pinto tento fazer coisas bonitas, sou um esteta, trabalho com escultura, música, ilustrações. Praticamente joguei fora as telas do Jangurussu durante esses nove anos. Mas um dia fui ao Museu de Arte da UFC e o professor Eymar, diretor do museu, acabou me convencendo a levar pra lá. Imaginava expor para o âmbito da universidade, professores, pessoas ligadas à sociologia, mas alguém viu, divulgou, um jornalista foi até lá...

OP - E como foi a repercussão?

Descartes - Não sabia que era uma coisa tão impactante. Gerou um negócio muito grande, passaram a se preocupar em extinguir aquela chaga social. Até então não se falava sobre o lixão. Há três meses, expus de novo. Fui proibido de pintar por causa da minha saúde. Dessa vez fui eu que pedi para o Eymar, como uma exposição de despedida da pintura. Mostrei tudo o que foi possível: estudos, desenhos, rabiscos. E se você vê o conjunto das obras, não vai encontrar estética. Foi um trabalho de alcova, solitário, não obstante estar perto de centenas de pessoas, foi um drama único e pessoal. Não são pra venda. Não é possível, principalmente numa cidade de formação burguesa e aristocrática. Querem arte sofisticada, mais apurada, europeia. A que é espelho do cearense, a que mostra a realidade, as pessoas detestam. É um espelho cobrador, denunciador.

OP - Durante aquele ano e meio de trabalho no Jangurussu, não houve nenhum momento de prazer? Só sofrimento?

Descartes - Só. Vi inclusive a morte. Era muito comum chegar um carro de luxo e uma mulher jogar um saco plástico. Os cachorros caíam em cima. Era um feto, um aborto. Pintei os cachorros, aquilo tudo. Disse que ia chamar o IML, um dos catadores respondeu que era comum. Não adiantava. Outra vez vi uma criança ser compactada pelo trator na frente da mãe. A mãe botou uma lágrima: “É dolorido, mas é um anjo que Deus recebeu”. A humildade deles é tão grande, tão poderosa. Uma visão dessa não tem graça, não tem estética e muda você para sempre.


Loa oficial do Maracatu Solar 2011


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Loa oficial do Maracatu Solar 2011

Riscou no Céu

Descartes Gadelha, Pingo de Fortaleza e Calé Alencar

Riscou no Céu uma estrelinha
Até pairar na beira do mar
E o menino que lá sonhava
Deu uma saia pra ela dançar

Da madrugada fez uma calunga
E do trovão um tambor
De um pedaço do firmamento
Um estandarte de brilho azul
Da lua cheia fez uma rainha
E Assim nasceu o Maracatu
Estrela Brilhante de onde tu estas
Vem com teu canto comigo brincar
Me faz cantar aquele teu canto
Que hoje é saudade aqui no SOLAR